sábado, 20 de novembro de 2010

A GENTE NÃO QUER SÓ A MÍDIA

Há uns quinze anos, quando eu morava em Aracaju, entrei numa loja dos Supermercados G. Barbosa e logo na entrada dei de cara com uma instalação de campanha do Dia dos Pais. Havia três manequins vestidos em estilo social, casual e esportivo, um cartaz com uma frase alusiva ao dia comemorativo e incentivando a compra. Os três manequins eram brancos, não me parecia que a maioria dos pais sergipanos estivessem ali representados.

Por Antonio Carlos Ferreira*

Hoje, aqui em Salvador, minha cidade natal, saio nas ruas e vejo os painéis de propaganda nas traseiras dos ônibus exibindo peças de faculdades sempre com modelos negros ou pardos. De igual forma os cartazes de publicidade do governo. É, parece que evoluímos, pois finalmente numa região do país onde a população negra é bastante numerosa começamos a nos ver na mídia. No afã de parecerem politicamente corretas, de fazer “uma média” como dizem ao antigos ou de pagar pau como dizem os jovens, as empresas agora colocam negros em tudo que é propaganda. Esta nova realidade traz, pelo menos duas vantagens para os negros. A primeira e mais específica é que os modelos negros ampliam sua fatia de participação no mercado e, por conseguinte, sua renda. A segunda, e mais abrangente, é que a mídia está ajudando a desconstruir a visão discriminatória de que o negro era inferior e que não era bonito, portanto não poderia aparecer em peças publicitárias. Felizmente esta situação mudou e agora está tudo bem. Não, não está tudo bem , eu já vi esse filme acontecer nos EUA, achei que estava tudo bem, depois descobri que não é bem assim. Eu vou explicar essa história nos mínimos detalhes. Voltando nosso olhar em direção aos EUA, de 40 anos atrás, tinha um filme chamado “Ao Mestre com Carinho” com o ator negro, Sidney Poitier, que era um galã por quem muitas adolescente suspiravam. Depois vieram outros astros negros tais como Richard Roundtree, Eddie Murphy, Will Smith, Whoopi Goldberg, Wesley Snipes, Denzel Washington. Na música havia Diana Ross, Tina Turner, George Benson, Whitney Houston, Donna Summer, Lionel Ritchie, Stevie Wonder e Michael Jackson que abriram espaço para Tracy Chapman, Beyoncé, Alicia Keys, Akon, Neyo e por aí vai. Hoje, a gente liga a TV e vê seriados como “Todo Mundo Odeia o Chris”, protagonizado por um ator negro e também “Eu, a Patroa e as Crianças” que gira em torno do dia-a-dia de uma família de negros. Na política, antes de Hillary Clinton, a secretária de estado americana era Condoleezza Rice que havia sucedido a Colin Powell, ambos negros. Observando todo esse panorama dos EUA eu achava que a situação de desigualdade estava bem mais resolvida. Só que quando eu conversava com negros americanos eles não tinham essa percepção e discordavam de mim. Até que um dia um americano me explicou melhor o porquê da discordância. Ele me disse que, de fato a luta pela equidade tinha provocado o debate e facilitado a introdução de algumas ações de reparação. Mas para eles, o que de fato aconteceu é que a elite dominante concedeu, na verdade, um cala-boca aos negros na forma de uma ascensão limitada e midiática para parecer que a mudança era substancial. Alguns negros tiveram projeção em áreas de grande visibilidade e daí se podia dizer “bem, o problema está resolvido pois vocês agora tem negros na música, em Hollywood, na política, nas passarelas, basta ligar a TV pra ver os negros em evidência. O que mais vocês poderiam querer?”. O fato é que, apesar da “maquiagem”, da falsa igualdade que se vê na mídia, para a maioria da população negra dos EUA, pouca coisa mudou e eles clamam por ações inclusivas mais abrangentes. A maior parte da população negra está em situação sócio-econômico-educacional inferior à da maioria dos brancos, nas penitenciárias a maioria é negra, já nas universidades a maioria é branca. Então, os negros em evidência na mídia de que muito se fala não são tantos assim e a grande massa continua nas camadas menos favorecidas e, tanto quanto no Brasil, aparecem maciçamente nas estatísticas da desigualdade.


Aqui no Brasil a é comum a gente ver uma propaganda de curso de pós-graduação em gestão onde apareçam uma mulher branca e um negro, vestidos como executivos. Tudo politicamente correto, evidenciando que a instituição abraça a causa da equidade de gênero e da diversidade étnica. Porém, ao consultar as estatísticas da ocupação de cargos de executivos nas empresas veremos que há bem poucas mulheres e negros nestes cargos. Não estamos tratando aqui de rejeitar a propaganda politicamente correta e requerer a volta aos padrões de mídia do passado, mas também não podemos nos contentar com migalhas e achar que atingimos um patamar satisfatório de equidade porque ainda estamos bem longe disso. O negro não tem que se limitar aos espaços que lhe foram concedidos na propaganda, na música e no futebol. Negro tem desejos ilimitados como qualquer ser humano (pois negro é parte da raça humana e não raça inferior) e também almeja ser médico, juiz, engenheiro, advogado, presidente. Portanto, a mudança da situação na mídia é bem-vinda , mas é insuficiente para reparar os danos sociais causados pela escravidão e insuficiente para atender os nossos desejos amplos e ilimitados como devem ser. Talvez por terem esta consciência, os americanos conseguiram eleger um negro à presidência, enquanto na Bahia nós não elegemos nem um governador , nem mesmo um prefeito.

Nos EUA, os negros americanos ficam sabendo que temos a cidade de maior população negra fora da África e que mantemos muitas tradições tais como o candomblé, a capoeira, o caruru, o acarajé, Irmandade e Procissão da Boa Morte, etc. Também escutam falar que no Carnaval dançam juntos o preto, o branco e o índio, porque como dizia Caetano “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”. Eles vêm conhecer o nosso modelo de democracia racial, mas bastam 02 dias de permanência e observação casual aqui e eles nos inquietam com depoimentos que expressam a sua vivência e percepção: desembarquei no Aeroporto de Salvador, de um avião onde piloto e comissários eram brancos, no banheiro do aeroporto a moça que limpava os vasos era negra, , o gerente da locadora de automóveis era branco. No hotel, o rapaz que nos recebeu para carregar as malas era negro, as camareiras também, dos 06 recepcionistas, apenas 01 era negro, o gerente do hotel era branco. Na rua almoçamos num restaurante onde os garçons eram negros, o gerente não era. Eram também negras a maioria das pessoas que estavam na praia vendendo protetor solar, queijo assado, CDs e DVDs, amendoim e castanha, o que catava latinhas e o sujeito que vocês chamam de “guardador de carros”. Mas era branco o dono da grande barraca que veio nos perguntar se estávamos sendo bem atendidos. No Carnaval, a banda que tocava em cima do trio tinha muitos negros, dentro do bloco, dançava uma maioria branca protegida por cordeiros negros. Do camarote onde estávamos, repleto de pessoas brancas, a gente via um monte de gente vendendo água, cerveja, churrasquinho, quase todos negros. A pirâmide social de vocês começa negra na base e vai branqueando até o topo.

E a gente que aqui está desde pequeninho olha para eles e diz “Você acha? Eu nunca tinha reparado nisso” assim bem sem graça, tipo sorriso amarelo.

Por isso precisamos estar atentos para não nos manterem confinados nas senzalas da modernidade. Apenas estar na mídia a muitos de nós não basta, a gente não quer só a mídia, a gente quer a política, a gerência, a medicina além do futebol e da arte, a gente quer saída para toda e qualquer toda parte.

Eu gosto muito de música, mas não sei tocar nenhum instrumento, aprecio o futebol, mas não me entendo bem com a bola, eu não faria sucesso no campo da música nem do esporte. Mas sou tarado pela informação e pelo conhecimento, amigo dos idiomas e curioso por natureza, intelectual por opção. Eu quero ser diplomata e por quê não? Não me pegue, não me toque, por favor, não me provoque. Sou negro sim, sou Zumbi, dos grilhões me libertei. Faz tempo!


*Retirado do Blog do Antonio Carlos Ferreira (clique aqui)

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