terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A nova dialética da vida política

As eleições de 2010 legaram um desafio democrático central às forças que elegeram Dilma Rousseff e um impasse programático nuclear às forças que apoiaram Serra: quanto mais se avançar na resolução desse desafio democrático, mais o impasse programático da oposição poderá se transformar em cisão

Por Juarez Guimarães*

A vitória da candidatura de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais de 2010 é historicamente decisiva porque alterou o padrão da luta política e da luta de classes no Brasil. Suas heranças não podem ser subestimadas por quatro razões.

Recém-saímos da disputa política nacional mais polarizada ideologicamente desde 1964. Isto é, os motivos, as forças sociais organizadas, as esperanças da esquerda e da direita brasileiras vieram à tona, em particular na dinâmica do segundo turno, conformando uma disputa que indicava dois caminhos diametralmente opostos para o Brasil.

Nessa polarização inédita na história brasileira recente – as cinco eleições disputadas por Lula não expressaram, por dinâmicas próprias, essa disputa assim tão nitidamente maturada –, compareceram inclusive muito claramente na formação da linguagem, nas estratégias midiáticas, no fanatismo religioso, tendências regressivas liberais-conservadoras e até protofascistas que aparecem muito vistosamente na cena política contemporânea norteamericana e europeia.

Mas ao contrário do pré-64, quando a chegada de João Goulart ao centro do governo, após a renúncia de Jânio Quadros e o breve episódio parlamentarista, se deu em clara minoria na Câmara e no Senado, Dilma Rousseff chega à Presidência apoiada em uma coligação majoritária nas duas Casas do Congresso e depois de dois mandatos amplamente populares do presidente Lula. Como mostra o professor Carlos Ranulfo em artigo nesta edição, PT, PSB, PDT, PCdoB, a ala esquerda e a ala centro-esquerda da coligação que elegeu Dilma, têm, por si só, quase um terço das cadeiras no Senado e na Câmara Federal. Enfim, a contradição entre um mandato presidencial de transformação e um Congresso dominado pelo conservadorismo, essa contradição que levou à paralisia e crise do governo Jango, foi diluída, em uma medida importante, nestas eleições. Dilma Rousseff governará potencialmente com uma maioria parlamentar nas duas Casas bem mais assentada do que nos mandatos do presidente Lula.

As eleições de 2010 serão também lembradas como aquelas que elegeram a primeira mulher para a Presidência do Brasil. Não se trata de um fato da vida política Nacional acaso que, por isso mesmo, tende a se diluir na dinâmica futura: nas últimas décadas democráticas tem havido um permanente processo de expansão das mulheres na vida social do país, seja no terreno do trabalho, seja no terreno da educação, embora sem um concomitante aumento da representação política feminina. A eleição de Dilma Rousseff, mais do que simbólica, pode, enfim, estabelecer uma conexão, uma dinâmica combinada, entre essas tendências de expansão da presença social das mulheres e uma nova dinâmica de seu protagonismo na vida política do Brasil.

Em quarto lugar, se as eleições de 2002 marcaram o fim do domínio neoliberal do governo no país, se as eleições de 2006 confirmaram a transição para um novo modelo de desenvolvimento econômico baseado na inclusão social, as eleições de 2010 parecem anunciar, colocar como desafio central, o avanço na democratização do poder no país. É a esse processo de democratização do poder político no país, com suas dimensões sociais, econômicas e culturais, que chamamos processo de revolução democrática. Isto é, uma dinâmica que combina transformações mais largas e estruturantes na vida do país, aprofundando o caminho aberto pelos dois mandatos de Lula, com a institucionalização de mudanças que aumentem a participação cidadã ativa nas decisões, o pluralismo social e político no campo das comunicações, a qualidade republicana do sistema eleitoral e de representação política, a universalização dos direitos e deveres simétricos entre os brasileiros junto com o aumento da soberania na vida econômica do país e, enfim, uma regulação e planejamento democrático de metas ambientais.

É exatamente esse caminho de aprofundamento da vida democrática do país que poderá levar à cisão o maior partido de oposição ao governo Dilma, o PSDB, hoje dividido entre lideranças e estratégias políticas alternativas.

Desenvolvimento e Estado do Bem-Estar Social

Se o presidente Lula assumiu o governo em 2003 com os fundamentos econômicos internos deteriorados – inflação e dívida pública ascendente, precário montante de reservas e acordo com o FMI –, mas em uma conjuntura internacional ainda marcada por um certo dinamismo, embora acumulando fortes contradições que viriam à tona em 2008, o inverso ocorre com Dilma Rousseff. Ela assume o governo com fundamentos mais reconstruídos – inflação sob controle e dívida pública em queda, reservas cambiais de mais de US$ 250 bilhões e uma dinâmica de crescimento do investimento público –, mas em um contexto internacional abertamente adverso, com uma “guerra cambial instalada”, deterioração das condições de crescimento na Europa e nos Estados Unidos e instabilidade financeira. Essa crise econômica internacional tem certamente o potencial de impactar a experiência do governo Dilma, e um de seus maiores desafios é exatamente procurar neutralizar essas componentes regressivas.

Por isso, parece haver uma consciência nítida de que a política macroeconômica tem de ser mais unificada e menos marcada por conflitos entre desenvolvimentismo e monetarismo neoliberal, que o Estado democrático tem de ser fortalecido em sua capacidade de planejamento e de investimento, que o crescimento sustentado dependerá cada vez mais das dinâmicas de inclusão social que alentam o mercado interno. Nesse contexto, o esforço do pré-sal, incentivando um novo ciclo exportador e subsidiando políticas sociais e de inovação, será certamente decisivo.

Os fundamentos democráticos dessa dinâmica econômica aprofundada revelam-se na maior soberania nacional, no aumento do poder da economia do setor público na economia brasileira (em particular, em sua dimensão financeira) e na expansão das condições sociais da universalização da cidadania. Tem sido Márcio Pochmann, atual presidente do Ipea, quem tem vinculado mais informada e sistematicamente esse novo ciclo de desenvolvimento à retomada da construção de um Estado do Bem-Estar Social (EBES) no Brasil.

É esse conceito que unifica e dá cobertura à meta central da gestão Dilma, de pôr fim à miséria no Brasil, entendida como aquelas famílias que recebem menos de um quarto do salário mínimo por pessoa (miséria extrema) ou menos da metade do salário por pessoa (miséria absoluta). O chamado “consenso social”, o fato de todos os candidatos nas eleições recentes enfatizarem as políticas públicas voltadas para os pobres, encontra nesse conceito de EBES um forte desmentido. Pois sua dinâmica de construção no Brasil exige a valorização dos direitos do trabalho (ao contrário dos liberais), a universalização do acesso (em vez dos programas focalizados) e a prioridade do serviço público (em contraste com a ênfase nos mercados de serviços privados).

Evidentemente, a partir de sua tradição do socialismo democrático, esta dinâmica de construção de um EBES, de forma retardatária e na semiperiferia do sistema capitalista mundial,  deve enfatizar os princípios de desmercantilização da reprodução da vida social, da despatriarcalização (clara adoção dos direitos das mulheres nas políticas públicas) e da desclientelização (através da ênfase da democracia participativa na elaboração e gestão das políticas públicas). Certamente tem também uma componente forte de afirmação dos direitos dos negros e de superação da cultura do racismo.

Três agendas democráticas centrais

Seria ingênuo pensar que tais transformações macroeconômicas e macrossociais, que deslocam a natureza concentradora da riqueza e hierarquizadora da desigualdade social do Estado brasileiro, possam ocorrer sem uma profunda democratização do poder político. A centralidade da agenda democrática vem daí. Só ela pode legitimar, unificar a base social, abrir caminho e estabilizar institucionalmente as conquistas macroeconômicas e macrossociais.

Desde a eleição de Lula à Presidência em 2002, está havendo uma mudança progressiva na correlação de forças no sistema político brasileiro, com aumento do poder da esquerda e da centro-esquerda e uma diminuição do poder da direita e da centro-direita. Mas essa mudança progressiva tem sido ameaçada por certos fundamentos centrais antirrepublicanos, que, fruto da transição conservadora do regime militar para a democracia, persistem na organização do Estado brasileiro.

O primeiro deles se refere às regras da competição eleitoral que estão no centro da institucionalidade democrática brasileira. Apesar de prever o financiamento público parcial (na forma do Fundo Partidário e da propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio), elas permitem amplamente a influência, sem controle, do poder dos capitais privados na disputa democrática. E, ao se concentrar na disputa individualizada para a representação parlamentar, incentivam a lógica do fisiologismo. A reforma política, sempre adiada, cobra um custo altíssimo da democracia brasileira: na sub-representação das maiorias e na super-representação de setores minoritários mas de grande capital, na conformação das coalizões em função da governabilidade parlamentar, na reprodução dos circuitos da corrupção. Encontrar seu caminho de viabilização nos próximos anos é o maior desafio.

Um segundo fundamento antirrepublicano do Estado brasileiro é sua dinâmica de decisão desvinculada das formas de cidadania ativa. Daí a importância central do chamado projeto de Consolidação das Leis Sociais, que vincula a institucionalização constitucional de programas sociais criados por normas infralegais com a institucionalização das formas de democracia participativa no governo federal, como as conferências nacionais e os conselhos temáticos. Ao estabelecer um canal virtuoso entre os movimentos sociais e a cidadania ativa com o sistema de decisão do Estado brasileiro, é a própria natureza elitista, privatista e patrimonialista do Estado que está sendo alterada.

São essas duas mudanças democráticas que permitiriam potencializar no próximo período um novo protagonismo político dos trabalhadores, dos negros e das mulheres na vida nacional. O segredo da sub-representação no sistema político nacional dos trabalhadores, dos negros e das mulheres está exatamente aí, na permanência de fundamentos antirrepublicanos no Estado brasileiro. Eles desconectam a dinâmica social da transformação da representação democrática dos novos sujeitos de direitos da revolução democrática.

O terceiro fundamento antirrepublicano é a reprodução dos circuitos de corrupção sistemática do Estado brasileiro, que se renovam em relação com o financiamento privado das campanhas eleitorais. Há hoje uma aberta contradição entre o inédito desenvolvimento de órgãos e procedimentos de controle, crescentemente convergentes pela ação da Controladoria-Geral da União, e a manutenção de padrões antirrepublicanos de funcionamento no Estado brasileiro, em todos os níveis da Federação. Daí a ocorrência sistemática de escândalos, que são em geral instrumentalizados e canalizados para as campanhas midiáticas contra o governo e o PT.

A reforma política, a Consolidação das Leis Sociais e o aprofundamento da luta sistêmica contra a corrupção constituem o núcleo dessa agenda democrática que, se não realizada, cobrará um preço cada vez maior daqueles que se colocam na perspectiva de transformação do país.

O impasse liberal-conservador

Assim, ao trazer para seu pronunciamento final de segundo turno o mote de que “a luta pela democracia está apenas em seu começo”, o candidato José Serra, do alto de seus 43 milhões de votos obtidos no segundo turno, estava expressando a consciência liberal-conservadora do que está objetivamente em disputa. O sentido dramaticamente conservador que assumiu sua candidatura, mais além de uma necessidade de sobrevivência, revelaria a consciência de que são os próprios fundamentos do poder financeiro e das oligarquias políticas, dos privilégios e dos circuitos privados de poder que estão sendo minados.

Com a arrogância de sempre, Fernando Henrique Cardoso afirmou: “43 milhões de votos não constituem uma elite”, querendo ressaltar a vitória do seu partido de idéias na derrota eleitoral. Certamente que não. Mas representam a capacidade dos setores elitistas liberais-conservadores de agirem nas brechas do que há de antirrepublicano na democracia brasileira para maximizar seu poder de influência. Ou a vitória no Centro-Oeste não reflete limpidamente o poder econômico do agronegócio? Ou ainda a vitória nos chamados setores das “classes médias esclarecidas”, tão forte em São Paulo e no Sul, não refletem em grande medida o poder da mídia empresarial de distorcer, difamar e “orientar” a formação de uma parte da opinião pública?

Pela consciência dos setores do PSDB e DEM liderados por Fernando Henrique Cardoso, o caminho de uma possível vitória nas eleições presidenciais de 2014 passaria por mais do mesmo, isto é, a reafirmação da mesma estratégia programática de oposição, só que organizada com mais anterioridade, mais eficiência e organização.

Outra é a consciência programática do PSDB mineiro, que saiu fortalecido com as vitórias obtidas contra o PT mineiro, elegendo no primeiro turno o governador e dois senadores. Para Aécio Neves, o caminho programático seria o transformista, isto é, a migração da centro-direita para o centro, buscando diálogo com forças de centro-esquerda da base do governo Lula, como o PSB e o PDT. Esse liberalismo renovado, em sua abertura para o centro, seria mais apto a conformar uma nova maioria nacional, unificando toda a base conservadora, como em Minas, e disputando setores da consciência democrática em formação no país.

Por isso, o que é um desafio democrático para a esquerda é verdadeiramente um impasse hoje para os liberais. Avanços nos fundamentos republicanos da democracia brasileira retiram a sedução das razões liberaisconservadoras e, ao mesmo tempo, dramatizam ao limite da ruptura a consciência que indica o caminho para o centro do PSDB mineiro.

Política é comunicação

Através da polarização de visões de mundo que dominou as eleições de 2010, todos os limites da ética pública democrática foram ultrapassados pela mídia empresarial, unificadas pelo programa liberal-conservador. O caluniador, essa figura da barbárie, foi ao centro da campanha de Serra. Dezenas de manchetes de jornais simplesmente mentirosas foram produzidas, evidenciando a desinformação sistemática da opinião pública. O espaço de pluralismo das opiniões minoritárias foi drasticamente reduzido, como ficou patente no episódio da demissão de Maria Rita Kehl do jornal O Estado de S. Paulo. E, pior ainda, fanatismos religiosos, preconceitos inconfessáveis, versões extraídas da ditadura militar sobre a tortura e seus personagens vieram à tona.

A lição definitiva destas eleições é que o núcleo da política democrática está no processo de formação da opinião pública. Se este é privatizado, como ocorre hoje em larga medida no Brasil, é a própria democracia que corre risco. Definitivamente, o Brasil democrático que está sendo construído não cabe nas páginas e imagens de ódio, preconceito, calúnia e antipluralismoque a mídia patronal exerce no cotidiano.

Tempos de emancipação são, por excelência, tempos de expansão da vida pública, da felicidade e da esperança, das amizades e dos amores, de novos encontros e diálogos. Fortalecer a mídia pública, regular democraticamente a mídia empresarial, como ocorre, por exemplo, nos países europeus, e dar nova vida aos circuitos alternativos de comunicação significam exatamente dar voz plena aos sujeitos plurais da democracia brasileira.




*É cientista político, professor na Universidade Federal de Minas Gerais

**Retirado do blog do Eduardo Valdoski – para pdf (clique aqui)

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