quarta-feira, 22 de junho de 2011

A crise na Europa e uma esquerda desorientada

Um dos homens mais poderosos do mundo (chefe da maior instituição financeira do planeta) agride sexualmente a uma das pessoas mais vulneráveis do mundo (modesta imigrante africana). Em sua desnuda concisão, esta imagem resume, com a força expressiva de uma foto de jornal, uma das características medulares de nossa era: a violência das desigualdades. O que torna mais patético o caso do ex-diretor gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e líder da ala direita do Partido Socialista francês, Dominique Strauss-Kahn é que, se confirmado, seu desmoronamento constitui uma metáfora do atual descalabro moral da socialdemocracia. Com o agravante de que revela, ao mesmo tempo, na França, as carências de um sistema midiático cúmplice.

Por Ignacio Ramonet*
Tudo isso deixa extremamente indignados muitos eleitores da esquerda na Europa, cada vez mais induzidos – como mostraram na Espanha as eleições municipais e autonômicas do dia 22 de março – a adotar três formas de rechaço: o abstencionismo radical, o voto na direita populista ou o protesto indignado nas praças.

Naturalmente, o ex-chefe do FMI e ex-candidato socialista à eleição presidencial francesa de 2012, acusado de agressão sexual e de tentativa de violação pela camareira de um hotel de Nova York no dia 14 de maio, goza de presunção de inocência até que a justiça estadunidense se pronuncie. Mas a atitude mostrada, na França, pelos líderes socialistas e muitos intelectuais de “esquerda”, amigos do acusado, precipitando-se diante de câmaras e microfones, para fazer imediatamente uma defesa incondicional de Strauss-Kahn, apresentando-o como o principal prejudicado, evocando complôs e “maquinações”, foi realmente vexatória.



Não tiveram nenhuma palavra de solidariedade ou de compaixão para com a suposta vítima. Alguns, como o ex-ministro socialista da Cultura, Jack Lang, em um reflexo machista, não hesitaram em diminuir a gravidade dos supostos fatos declarando que “afinal de contas, ninguém morreu” (1). Outros, esquecendo o sentido da palavra “justiça”, se atreveram a pedir privilégios e um tratamento mais favorável para seu poderoso amigo, pois, segundo eles, não se trata de “um acusado como outro qualquer” (2).

Tanta desfaçatez deu a impressão de que, no seio das elites políticas francesas, qualquer que seja o crime de que se acuse a um de seus membros, o coletivo reage com um respaldo articulado que mais parece uma cumplicidade mafiosa (3). Retrospectivamente, agora que ressurgem do passado outras acusações contra Strauss-Kahn de abuso sexual (4), muita gente se pergunta por que os meios de comunicação ocultaram esse traço da personalidade do ex-chefe do FMI (5). Por que os jornalistas, que não ignoravam as queixas de outras vítimas de assédio, jamais realizaram uma investigação de fundo sobre o tema. Por que se manteve os leitores na ignorância e se apresentou a este dirigente como “a grande esperança da esquerda” quando era óbvio que seu calcanhar de Aquiles podia, a qualquer momento, truncar sua ascensão.

Há anos, para conquistar a presidência, Strauss-Kahn recrutou brigadas de comunicadores de choque. Uma de suas missões consistia em impedir também que a imprensa divulgasse o luxuosíssimo estilo de vida do ex-chefe do FMI. Desejava-se evitar qualquer inoportuna comparação com a vida esforçada que levam milhões de cidadãos modestos lançados ao inferno social em parte precisamente pelas políticas dessa instituição.

Agora as máscaras caem. O cinismo e a hipocrisia surgem com toda sua crueza. E ainda que o comportamento pessoal de um homem não deva servir para prejulgar a conduta moral de toda sua família política, é evidente que contribui para se perguntar sobre a decadência da socialdemocracia. Ainda mais quando isso se soma a inúmeros casos, em seu seio, de corrupção econômica, e até de degeneração política (os ex-ditadores Ben Ali, da Tunísia, e Hosni Mubarak, do Egito, eram membros da Internacional Socialista!).

A conversão massiva ao mercado e à globalização neoliberal, a renúncia à defesa dos pobres, do Estado de bem estar e do setor público, a nova aliança com o capital financeiro e a banca, despojaram a social-democracia europeia dos principais traços de sua identidade. A cada dia fica mais difícil para os cidadãos distinguir entre uma política de direita e outra “de esquerda”, já que ambas respondem às exigências dos senhores financeiros do mundo. Por acaso, a suprema astúcia destes não consistiu em colocar a um “socialista” na direção do FMI com a missão de impor a seus amigos “socialistas” da Grécia, Portugal e Espanha os implacáveis planos de ajuste neoliberal? (6).

Daí o cansaço popular. E a indignação. O repúdio da falsa alternativa eleitoral entre os dois principais programas, na verdade gêmeos. Daí os protestos nas praças: “Nossos sonhos não cabem em vossas urnas”. O despertar. O fim da inação e da indiferença. E essa exigência central”: “O povo quer o fim do sistema”.

Notas:

(1) Declarações ao telejornal das 20h na cadeia pública France 2, dia 17 de maio de 2011.

(2) Bernard-Henri Lévy, “Defesa de Dominique Strauss-Kahn”, e Robert Badinter, ex ministro socialista da Justiça da França, declarações para a rádio pública France Inter, 17 de maio de 2011.

(3) Este coletivo já deu provas de sua tremenda eficácia midiática quando conseguiu mobilizar em 2009 a opinião pública francesa e as autoridades em favor do cineasta Roman Polanski, acusado pela Justiça estadunidense de ter drogado e sodomizado, em 1977, uma menina de 13 anos.

(4) Em particular, a formulada pela escritora e jornalista Tristane Banon. Leia-se: “Tristane Banon, DSK et AgoraVox: retour sur une omertà médiatique”, AgoraVox, 18 de maio de 2011.

(5) No próprio interior do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn já havia sido protagonista, em 2008, de um escândalo por sua relação adúltera com una subordinada, a economista húngara Piroska Nagy.

(6) “Seu perfil ‘socialista’ permitiu enfiar pílulas amargas na garganta de
muitos governos de direita ou esquerda, e explicar aos milhões de vítimas das finanças internacionais que a única coisa que tinham que fazer era apertar o cinto à espera de tempos melhores”, Pierre Charasse, “No habrá revolución en el FMI”, La Jornada, México, 22 de maio de 2011.

(*) Ignacio Ramonet fue director de Le Monde Diplomatique entre 1990 y 2008.


Tradução: Katarina Peixoto




**Retirado do site Agência Carta Maior (clique aqui)

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