Defendo plenamente o direito dos colegas de profissão de falarem abobrinha para seu leitor, ouvinte, telespectador. Também defendo o direito dessa abobrinha ser contestada em público e o colega questionado sobre sua competência com números ou sua cara-de-pau. Liberdade de expressão deve servir para os dois lados da questão, caso contrário entramos no campo do monopólio da verdade (se é que verdade existe), almejada por tantos.
Quando chegamos na época do ano em que se discute o tamanho do aumento do salário mínimo, alguns comentaristas quase têm um ataque cardíaco. Dá para perceber o suadouro de muitos deles, implorando para que o governo e os congressistas sejam “racionais”, que não criem um problema inflacionário, não empurrem as pobres empresas para a demissão de seus empregados e para a adoção da informalidade e não aumentem o “rombo” nas contas públicas por conta da Previdência. Hoje, ouvi uma pérola da boca de um deles, um famoso, dizendo que a Constituição Federal está errada porque, em seu artigo sétimo, prevê que o salário mínimo deve ser de tamanho suficiente para garantir alimentação, saúde, educação, lazer, moradia…, ou seja, garantir dignidade. Para isso, todos sabemos, o valor teria que ser bem maior que os R$ 510,00 que estão sendo previstos para 2010, ultrapassaria os R$ 2 mil segundo o Dieese. Errada, segundo ele, porque isso provocaria um caos só comparável a uma hecatombe maia.
Isso, desconsiderando, é claro, que se as empresas não sonegassem impostos previdenciários ou, na melhor das hipóteses, não empurrassem seus débitos com o INSS com a barriga, haveria mais recursos para cobrir o “rombo” nas contas públicas. Coloco sempre essa palavra entre aspas porque ela tem que ser entendida de outra forma. Previdência não é para dar lucro ou mesmo empatar, não é banco, apesar do desejo de muitos. Deve cumprir uma função social e ser um instrumento para garantia da qualidade de vida de um povo. Só para lembrar que, antes do Bolsa Família, a aposentadoria rural era o maior programa de distribuição de renda do país, garantindo a subsistência de milhões de família no campo. E, ainda hoje, tem uma importância ímpar – a despeito de tantos comentaristas que debatem a “utilidade” dessa política.
Enche-se a boca para falar dos bilhões a serem gastos a mais com o mínimo, uma preocupação frente à queda de arrecadação. Fingem que ignoram que isso vai impulsionar o consumo de milhões de famílias, rodar a economia em locais pobres e, sobretudo, tornar a vida de uma parcela da população menos sofrida. Mas quando os bilhões são aqueles destinados ao perdão de dívidas de grandes produtores agrícolas ou na rolagem de dívidas industriais, reina o silêncio. Ou pior, o apoio deslavado.
A Constituição não está errada, o país é que está. Há estudos que apontam que o PIB brasileiro comportaria um aumento até maior do mínimo, desde que houvesse uma distribuição real de renda, de direitos e de justiça. Ou seja, redução da desigualdade. Alguns perderiam para muitos ganharem. Da taxação de heranças seguindo um modelo americano ou europeu, passando pela cobrança de altos impostos sobre grandes fortunas, pelo aumento no imposto de renda de quem ganha bastante, até a reforma para um Estado que garanta “Justiça fiscal”, considerando que, proporcionalmente, os muito ricos não pagam imposto no Brasil, há muito o que se poderia fazer.
Poderia, porque isso está no campo da ficção científica. Tão difícil quanto ver um comentarista de economia conservador que viva com salário mínimo e, portanto, entenda o que é passar necessidade.
*Leonardo Sakamoto é jornalista e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
** Foto retirada do O Jornal
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