sábado, 23 de janeiro de 2010

Quando os haitianos são saqueadores e quando apenas estão com fome?

Do site The Root (clique aqui). Versão traduzida retirado do site Vi o Mundo (clique aqui)


Uma chamativa foto de Damon Winter de uma criança haitiana está na capa do New York Times deste domingo. Um menino de cerca de 10 anos vestindo uma camisa polo maior que ele, vermelha, é flagrado em meio a um passo, correndo pelas ruas de Porto Príncipe, com os olhos mirando o horizonte, segurando um saco plástico branco.

A legenda parece fazer uma narração "objetiva" dos fatos. "Haitianos fogem de tiros que foram dados no centro de Porto Príncipe no sábado. Toneladas de ajuda chegaram para distribuição". Fica por conta do leitor conectar os pontos e conectá-los com outro artigo de primeira página abaixo da dobra: "Saques aparecem onde não existe ordem".

A criança era saqueadora?


Cinco anos atrás, quando você podia comparar as legendas de fotos de sobreviventes brancos do furacão Katrina [em Nova Orleans] lado a lado com fotos de sobreviventes negros, o padrão duplo da cobertura da tragédia catastrófica ficou evidente. Famintos e desesperados sobreviventes brancos estavam "encontrando comida", negros desesperados estavam "saqueando" comida.

Desde que o terremoto atingiu o Haiti, não sei qual me preocupa mais: Se o fato de que muitos observadores, inclusive a estrategista política e nativa de Nova Orleans Donna Brazile, tem traçado paralelos fáceis entre as duas cidades. Ou se muitas dessas comparações acabam se revelando verdadeiras.

Comecemos com o negócio da "maldição do diabo" [ela se refere ao televangelista Pat Robertson, que disse que o terremoto foi punição por um suposto pacto com o diabo que os haitianos teriam feito para derrotar os franceses, na rebelião dos escravos que esteve na origem da independência do país].

Já discuti a verdade sobre como os haitianos conseguiram derrotar o exército francês sem qualquer ajuda satânica em outro artigo. E Kathleen Parker descobriu a fonte dessa lenda urbana (teria sido uma cerimônia de voodoo em 1791).

Mas o papo sobre o diabo também surgiu depois do Katrina. Outro assim chamado cristão, pastor John Hagee, um dos apoiadores do [senador] John McCain [depois candidato à Casa Branca pelo Partido Republicano], disse a Terry Gross da rádio NPR [a rádio pública dos Estados Unidos] que o furacão Katrina foi, na verdade, um julgamento de Deus contra a cidade de Nova Orleans. "Nova Orleans tinha um nível de pecado que era ofensivo a Deus", Hagee disse, porque "deveria ter havido um desfile homossexual lá na segunda-feira em que o Katrina veio".

Philip Kennicott do Washington Post acredita que o furacão Katrina abriu caminho para o abandono dos padrões de imagens chocantes que podem ser publicadas pela mídia. Ele diz que a natureza chocante das imagens que chegam de Porto Príncipe é desumanizante. "Corpos enfiados em poeira e concreto, rostos cobertos de sangue, os mortos empilhados nas ruas sem lençóis para cobrí-los -- estas são violações do código não escrito de como a morte pode ser vista, na etiqueta estabelecida pela mídia corporativa", ele escreveu em um texto recente.

"[O Haiti] era um país descartado, aparentemente consignado ao status de um morador de rua cujas necessidades são intratáveis... A câmera está gravando coisas que vão afetar tudo que tiver a ver com o futuro desse país atribulado. Está perguntando se essa gente é gente como nós. Está perguntando se nós acreditamos que eles são humanos".

Estou inclinada a achar que as imagens de Porto Príncipe até agora são mais iluminadoras que explosivas. Mas o argumento principal de Kennicott sobre o jeito que a câmera vê gente morena é totalmente válido. A cena de linchamento descrita no New York Times de domingo é revoltante. Uma coisa é "encontrar" pão, outra é invadir lojas e furtar pedaços de carpete e malas enquanto se intimida gente com facões e revólveres.

Testemunhas disseram aos jornalistas Simon Romero e Marc Lacey que a polícia prendeu um homem acusado de saquear um caminhão e assistiu enquanto ele era espancado até a morte e queimado por uma multidão furiosa. Já que não existe prova fotográfica e os repórteres narraram a cena de segunda mão, é difícil saber com certeza absoluta o que aconteceu.

Mas o fato 100% verdadeiro é que a cena terrível não tem nada a ver com a criança da camisa vermelha cuja foto foi feita quando suprimentos e comida estavam sendo distribuídos. A foto representa a imagem da anarquia negra, ou seja, O Horror [referência ao "The horror, the horror", frase que encerra o livro de Joseph Conrad, Heart of Darkness, ficção baseada na viagem do autor ao Congo; livro que inspirou o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, que retrata a barbárie 'branca' no Vietnã].

Talvez mais significativo quando se trata de paralelos entre o Katrina e o terremoto do Haiti é o debate sobre como chamar os desabrigados. Nos primeiros dias depois do Katrina, a mídia americana, pequena e grande, estava chamando os cidadãos americanos desabrigados pelo furacão de "refugiados".

Eu estava ensinando jornalismo em uma universidade na época e um de meus estudantes defendeu vigorosamente o uso da palavra "refugiados" naquele contexto. Quando o pressionei por uma definição de refugiado, que o [dicionário] Webster diz ser "uma pessoa que foge de um país ou poder estrangeiro para escapar de perigo ou perseguição", ele se manteve firme: "Eles são refugiados. Eu vejo na CNN; sei com que se parecem os refugiados".

É bom ter isso em mente nos próximos meses e anos, quando verdadeiros refugiados vierem para as fronteiras dos Estados Unidos. Eles serão morenos. Eles serão pobres. E desesperados.

O que quer que os chamemos, as imagens que a mídia faz deles contarão sua própria verdade.

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