Artigo de Saul Leblon
Causaram certo frisson eleitoral as declarações de José Serra à rádio CBN, da Globo, na segunda-feira, 10 de maio. Instado a prestar juras de fidelidade à supremacia das finanças desreguladas na rudimentar concepção de "Banco Central independente" da entrevistadora Miriam Leitão – uma vulgarizadora da agenda neoliberal na mídia--Serra destemperou.
De forma ríspida, o tucano interpelou a jornalista sugerindo seu comprometimento com interesses dos mercados. A palavra lobista ficou no ar sem ser pronunciada. Por fim, passou a idéia - sedutora para alguns - de que submeterá o Banco Central a sua vontade, caso seja eleito em outubro. O frisson à esquerda decorre em grande parte do paradoxo que até mesmo simpatizantes do Presidente Lula enxergam no comportamento cauteloso do seu governo em relação aos privilégios rentistas no país, entre os quais a prerrogativa da definição ‘independente’ da taxa básica de juros da economia.
Talvez o maior paradoxo, porém, resida na ilusão de que um candidato empalmado pelas forças conservadoras, como é o caso de Serra, possa alterar a dinâmica da repartição da riqueza em benefício do setor produtivo e dos trabalhadores com um simples ato de vontade unilateral. Sim, replicam alguns economistas respeitáveis, a China o faz. De fato, faz até mais que isso ao impor a paridade cambial que lhe convém às moedas do resto do mundo. Mas os olhos esbugalhados de Serra não são os olhos oblíquos de Hu Jintao. Tampouco a coalizão demotucana que ele representa neste pleito se confunde com o Partido Comunista Chinês.
Embates que definem questões essenciais como a repartição da riqueza numa sociedade não podem ser atribuídos a um confronto de personalidades. A Revolução Russa não existiria sem Lênin. O PT não teria a força atual sem Lula. Mas o personalismo que pretende substituir a história pela vontade individual não passa de uma corriqueira utopia daquelas classes que anseiam por uma terceira via, ou um golpe de mão, que as salve do emparedamento social.
A progressiva baldeação da carreira política de Serra para o campo conservador a ponto de hoje ser a esperança de uma volta ao poder da extrema direita nativa, das classes médias que se sentem preteridas pelo ‘assistencialismo’ de Lula e da plutocracia paulista, reflete esse desvario recorrente. Entre outras características desse bloco de forças encontra-se a ojeriza a movimentos populares organizados, tão bem verbalizada em poções semanais pela revista Veja com refil diário fornecido pela Folha, hoje reduzida a um impresso de circulação interna do clube de leitores tucanos.
Nas administrações públicas nas quais Serra exerceu cargos executivos, esse elixir pouco republicano derivou para a pancadaria pura e simples contra partidos e sindicatos empenhados em movimentos reivindicatórios. É sintomático que hoje em SP até sindicatos tucanos, que apóiam Alckmin na disputa estadual, recusem igual endosso a Serra. O higienismo social é outra brotação desse intercurso conservador. Na prefeitura paulista, Serra deixou a marca registrada nesse quesito ao criar as rampas anti-mendigos que fazem a festa dos endinheirados e atazanam os dias, e sobretudo as noites, dos moradores de rua alojados, como se sabe, de puro capricho, debaixo de viadutos e pontes. O insulamento do candidato tucano no próprio PSDB, atesta por fim essa fé cega na faca amolada da proficiência do ‘eu faço”, cacoete típico do individualismo da classe média que uma vez no poder se desdobra em centralismo burocrático obsessivo, atestado por muitos que privaram das relações de trabalho com Serra.
Não se confunda essas observações com a personalização da história que se almeja criticar. Trata-se apenas de arrolar elementos que ajudem a entender melhor os limites que estão por trás do destempero tucano na entrevista à CBN. E, sobretudo, os limites da ilusão alimentada por quem acredita que ele - ou a qualquer outro ungido - poderá ‘operar’ melhor as relações de força com o capital financeiro, peitando-o exclusivamente com base em uma ‘personalidade forte e centralizadora.
Sistema Financeiro e Desenvolvimento
A autonomia concedida informalmente ao Banco Central no governo Lula nem por isso merece o conformismo histórico ou a tolerância obsequioso. Críticos desse paradigma, como o economista Ricardo Carneiro, professor da Unicamp, recusam a disjuntiva que de certa forma congelou o debate sobre o tema no primeiro mandato, quando o ambiente interno do governo – a partir do Ministério da Fazenda— foi colonizado pela idéia de que a contestação à autonomia do BC na definição dos juros levaria à ruptura, ao enfrentamento e ao desastre financeiro. “Tanto não era verdade que as coisas mudaram no segundo mandato, sem grande traumas’, contrapõe Carneiro para emendar em tom de brincadeira: “ A partir daí, sim, podemos dizer que a taxa real de juros caiu a níveis nunca antes vistos na história deste país’.
O economista acaba de lançar o livro “Sistema Financeiro e Desenvolvimento no Brasil”, escrito em parceria com o também economista e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Luiz Cláudio Marcolino. Os textos deste que não é apenas um livro, mas talvez a expressão de um novo pólo germinador de idéias para o desenvolvimento, miram exatamente na direção das mudanças estruturais requeridas pelo Sistema Financeiro Nacional para se tornar uma alavanca efetiva do investimento de longo prazo, com juros acessíveis e fundings regulares. Tal abordagem não descarta ajustes de curto prazo na autonomia do BC, mas desvela uma perspectiva bastante distinta daquele baseada na suposta capacidade desse ou daquele presidenciável de ‘operar’ – sozinho -novas relações de poder condensadas na definição da taxa de juros.
Carneiro, é forçoso repetir, alinha-se entre os críticos da política ortodoxa do BC, a exemplo de Maria da Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo, por exemplo. O que os preocupa, sobretudo, são as conseqüências de longo prazo geradas pelos encadeamentos dessa distorção na matriz industrial brasileira. Um dos mais letais, na avaliação de Carneiro, é a valorização cambial decorrente do ingresso de capitais especulativos, atraídos pela arbitragem do juro alto. “A sobrevalorização da moeda daí decorrente’, lembra o economista da Unicamp, ‘desmantela cadeias produtivas ao transferir a demanda de insumos, máquinas e equipamentos para o exterior, ademais de inibir o investimento diante de importações duplamente competitivas. De um lado, por conta do câmbio; de outro, pela escala e os custos da indústria chinesa, por exemplo’.
O alerta para os riscos não o impede de observar outro processo de mudança em curso na economia, desta vez em sentido oposto. Embora lento, soa significativamente mais consistente como perspectiva de futuro do que bravatas eleitorais. ‘As coisas começaram a mudar nas relações de poder entre o capital financeiro e demais setores quando o então ministro do Trabalho, Luiz Marinho, emplacou a política de valorização do salário mínimo no governo’, pontua Carneiro chamando a atenção para um ‘preço’ da economia que abocanhou um aumento real de 73% acima do INPC desde 2003. “Em seguida”, continua, ‘já com Mantega na Fazenda em substituição a Palocci, e Dilma na Casa Civil, o dogma do superávit primário começou a trincar. As taxas de juros recuaram significativamente desde então e’ - chama a atenção - ‘pode parecer pouco, mas o volume de recursos destinados ao pagamento dos juros da dívida interna, hoje, depois de muitos anos na liderança do gasto público, tornou-se o segundo orçamento do Estado: o primeiro, agora, é a rubrica de políticas sociais e previdenciárias”.
Simultaneamente e não por acaso – sublinha - ocorreria a volta do investimento pesado em infraestrutura social e logística com o PAC. “Durante a crise’, lembra o professor da Unicamp, ‘a expansão das linhas de crédito vinculado, bem como a liquidez fornecida pelos bancos públicos, comprovaria o acerto de se ter não apenas preservado mas fortalecido um segmento financeiro do Estado, como o BNDES, com taxas de juros não atreladas à Selic. E note” – altera a voz - "Carlos Lessa caiu no BNDES no 1º mandato de Lula justamente por ter enfrentado Meirelles que naquele momento sentia-se respaldado para argüir o custo do dinheiro barato nos financiamentos do banco, com base na TJLP. Isso acabou’. São essas fissuras abertas na ‘autonomia do BC’, segundo ele, que explicam em grande parte o aparente paradoxo brasileiro no pós-crise: ter ainda a taxa básica de juros mais alta do mundo e, ao tempo, figurar como uma das economias de recuperação mais vigorosa do planeta.
Não há, de qualquer forma, espaço para ilusões. Para influenciar o jogo duro da repartição da renda e do poder no país, Carneiro e os sindicalistas que abraçaram o projeto do livro comemorativo dos 87 anos do Sindicato dos Bancários defendem um horizonte de reformas profundas no sistema financeiro nacional. Elas são indispensáveis, no entender desse novo e auspicioso círculo de entrelaçamento acadêmico e sindical, para viabilizar o passo seguinte do desenvolvimento na sucessão de Lula. Entre outras providências, seus integrantes – que não escondem o voto em Dilma Rousseff - trarão para a agenda de 2011-2014, caso a ex-ministra vença, bandeiras como a democratização do Conselho Monetário Nacional para incluir trabalhadores e empresários em sua composição. Mas também a prestação de contas republicana deste órgão, e do Banco Central , ao Congresso Nacional. Sintomaticamente, são bandeiras historicamente rejeitadas pelos interesses políticos e econômicos coagulados hoje em torno da candidatura do tucano José Serra à Presidência da República.
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