D. Pedro I: um grito parado no ar
Vejamos agora como se constroem socialmente os fatos e personagens históricos, tendo como referência a história Brasil. Comecemos pelo processo de nossa independência política, que teve como um de seus momentos mais comemorados a proclamação ocorrida em 7 de setembro de 1822. É incontestável que esta data se constitui um típico fato histórico. Acredito que ninguém, atualmente, negaria isto ou proporia eliminá-lo do calendário cívico nacional.
Por Augusto Buonicore**
É claro, as coisas não ocorreram como estão descritas na clássica pintura de Pedro Américo, que se encontra num lugar de honra no Museu do Ipiranga. A referida tela foi produzida muitas décadas depois do famoso grito de Dom Pedro. Seu objetivo, não declarado, era enaltecer os feitos do membro fundador da família real brasileira. Os Bragança, naquele momento, passavam por graves dificuldade. Estávamos em 1888, às vésperas da proclamação da República.
O jovem príncipe não estava montado num garboso cavalo e sim numa simples mula, ainda que real. A sua comitiva e os soldados não trajavam vistosas roupas de gala, mas vestes surradas e empoeiradas da longa viagem pelo interior do país. Contudo, foi aquela cena deixada pelo pintor paraibano que prevaleceu no imaginário da Nação. Para que isso ocorresse, foi preciso reproduzi-la nos livros didáticos, nos selos comemorativos e nos filmes apologéticos, como “Independência ou morte”. Na época, o trabalho de Pedro Américo custou uma pequena fortuna aos cofres públicos — cerca de 30 contos de réis.
Isto pouco importa, pois sabemos que a Independência do Brasil não se reduziu ao grito de D. Pedro dado às margens plácidas do Ipiranga. Ela foi um processo longo, que conheceu vários episódios desde a revolta de Bequimão (1684), a revolta de Felipe dos Santos (1720), a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1799) e a Insurreição Pernambucana (1817).
No 7 de setembro de 1822, proclamou-se a Independência, preservando a monarquia, a supremacia da Casa de Bragança e os interesses econômicos e sociais fundamentais das classes dominantes brasileiras: a escravidão, o latifúndio e o predomínio da agroexportação do açúcar e do café. O Brasil ficou sendo o único Estado monárquico da América Latina.
Mesmo assim, não se pode chamar o final do processo de independência de incruento. Isto significaria ficar apenas nas aparências e nos curvarmos perante uma visão liberal-conservadora da nossa história. A independência incruenta (ou moderadamente cruenta) se deu no eixo Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, no qual a corte brasileira tinha influência e maior controle. Nas regiões Norte e Nordeste havia uma situação bem diferente. Historicamente, suas relações econômicas e políticas se davam mais com a Metrópole portuguesa do que com o Rio de Janeiro. Ali eram maiores as influências metropolitanas e existiam fortes laços de fidelidade das tropas e do comércio, em geral compostos de portugueses, em relação às cortes do além mar.
Em fevereiro de 1822, eclodiu a Guerra da Independência na Bahia. Ela se iniciou quando os baianos se recusaram a aceitar a indicação do novo governador de armas, o coronel lusitano Madeira de Melo. As tropas portuguesas atacaram os patriotas brasileiros e os derrotaram. A guerra somente foi vencida no dia 2 de julho de 1823. No Maranhão, a junta lusitana só seria derrotada mais de um ano após a Independência. Mais de oito mil brasileiros combateram o domínio português naquele estado. A mesma coisa aconteceu no Piauí. As mobilizações de tropas nesses episódios não ficaram aquém das ocorridas na guerra de independência da América espanhola.
Mesmo assim, a nossa independência não estava plenamente assegurada. Vários perigos pairavam sobre ela. A maioria deles vinculados à permanência de um príncipe português no trono brasileiro. Um monarca que vez ou outra exprimia sua fidelidade mais ao pai e a Portugal do que ao Brasil. Em 1831, depois de acirrados conflitos políticos e choques de ruas, D. Pedro renunciou ao trono. Para alguns historiadores, somente a partir deste momento a nossa independência política estaria concluída.
Como podemos ver, nosso processo de independência conheceu inúmeras datas e personagens. Contudo, poucos deles foram selecionados para compor a história oficial. Por longos anos, o título de herói da Independência acabou recaindo na polêmica figura de D. Pedro I. E o fato histórico determinante, o grito dado às margens do riacho do Ipiranga. Estas escolhas, decerto, nada tiveram de casual. Elas se enquadravam perfeitamente dentro dos interesses das classes dominantes brasileiras, que procuravam símbolos que melhor expressassem e servissem à sua dominação.
Os historiadores socialistas sabem que a nossa independência não foi obra de D. Pedro, nem aconteceu num único dia. Ela foi o resultado de inúmeras contradições, que se acumularam por séculos, entre os interesses da colônia e da metrópole. Ela não teria sido possível sem as inconfidências mineira e baiana; sem as guerras de libertação na Bahia, Maranhão e Piauí; sem os levantes populares em várias cidades, como os ocorridos no Rio de Janeiro, em 1831. Não se realizaria sem o pensamento e ação dos setores populares e radicais do movimento de independência, representados nas figuras de Frei Caneca e Cipriano Barata.
Tiradentes e a Inconfidência Mineira: obras republicanas
Vejamos um outro herói e outro fato histórico incontestáveis. Refiro-me ao Tiradentes e à Inconfidência Mineira. Neste caso, ao contrário do exemplo anterior, ninguém tem dúvidas sobre o heroísmo de Joaquim José da Silva Xavier. Ele é, incontestavelmente, o principal herói brasileiro. É o seu rosto, por exemplo, que consta da exposição do bi-centenário da independência da Argentina, na Casa Rosada – ao lado de Bolívar e San Martin.
Mas nem sempre foi assim e, talvez, nunca tivesse sido se não fosse pela decisão de alguns homens. Digo homens, pois as mulheres apitavam pouco naquele momento. O próprio termo inconfidência, literalmente, significa “ato de deslealdade, traição”. Portanto, era uma palavra com forte sentido pejorativo e que hoje soa quase como um elogio à rebelião.
Pelo menos até 1889 – ou seja, 100 anos depois da sua morte – o nome de Tiradentes não era digno de nenhuma menção governamental especial e muito menos objeto de comemorações cívicas. Era considerado mais louco do que herói. Afinal, eram os filhos e netos da rainha “Maria Louca” – que o mandou enforcá-lo e esquartejá-lo - que se encontravam no poder. Somente após a Proclamação da República Tiradentes passou a compor o panteão dos heróis nacionais e a data de sua morte – o 21 de abril – virou feriado nacional.
Mas por qual razão foi escolhida a Inconfidência Mineira e a figura de Tiradentes como símbolos da luta pela liberdade da Pátria? Em primeiro lugar, por este movimento ter sido liderado por uma elite ilustrada – poetas, oficiais do exército, padres, funcionários públicos, empresários etc. Todos senhores brancos e respeitáveis membros da sociedade colonial. A favor de Tiradentes, o mais pobres deles, pesava o fato de ser republicano e, principalmente, alferes (equivalente ao posto de segundo-tenente). Sabemos que a República foi, em parte, obra de militares — como Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Benjamim Constant. Assim, eles puderam traçar um fio de continuidade entre suas idéias (e posição social) e as de Tiradentes.
A escolha, contudo, poderia ter recaído sobre outros movimentos, outros mártires. Dez anos depois da Inconfidência Mineira eclodiu uma tentativa de conjuração na Bahia – também chamada de Revolta dos Alfaiates. Como o próprio nome já indica, ela foi mais popular que a primeira. Por isso mesmo, causou maior impacto na colônia – colocando em alerta a própria metrópole. As bandeiras dos conjurados baianos eram: independência, República e Abolição da Escravidão. Ao contrário do que aconteceu em Minas Gerais, da Conjuração Baiana participaram muitos escravos e ex-escravos. Se a Inconfidência Mineira foi muito influenciada pela Revolução Americana, a Conjuração Baiana o foi pela Revolução Francesa, muito mais radical.
Quatro de seus líderes foram enforcados no dia 8 de novembro de 1799. Como Tiradentes, todos tiveram seus corpos esquartejados e seus membros decepados colocados em praça pública para que a população visse e não tentasse seguir o seu exemplo. Dos mortos, dois eram soldados rasos e dois alfaiates. Seus nomes: Lucas Dantas, Manuel Faustino, Luiz Gonzaga das Virgens e João de Deus Nascimento. Nomes que quase desapareceram da história.
Zumbi e Palmares: arrombando a festa oficial
Por fim, vejamos um último herói e uma última data histórica. Refiro-me à Zumbi de Palmares e ao 20 de novembro, data provável de sua morte. Se hoje fizéssemos uma pesquisa sobre qual seria o principal herói brasileiro, sem dúvida o nome deste líder negro estaria disputando palmo a palmo os primeiros lugares com o alferes Tiradentes e com o imperador D. Pedro I. Nada mais justo.
Não precisamos dizer que este é um fenômeno novo. Era inconcebível que isto pudesse ocorrer durante o Império escravista (1822-1889) ou mesmo durante os primeiros anos da chamada República Oligárquica (1889-1930), quando ainda predominavam ideologias assentadas no “racismo científico”. Onde o ideal para o Brasil era de uma sociedade composta por uma população exclusivamente branca, sem mestiços ou negros. Numa sociedade elitista e racista, decerto não haveria lugar para heróis negros desta natureza.
Zumbi começou aparecer na história durante a campanha abolicionista – incorporado pelo seu setor mais radicalizado. Era uma das referências de um determinado movimento cívico, ao lado de outros personagens, como legendário líder dos escravos de Roma, Spartacus.
Seria preciso transcorrer quase cem anos da abolição da escravidão para que o nosso herói negro começasse a galgar os íngremes degraus do panteão da pátria. Coisa que só foi possível devido à crise da ditadura militar e a democratização do país, fortemente impulsionados pelos movimentos de contestação popular, no qual se incluía as organizações negras. A data provável da morte de Zumbi, atualmente, é feriado em vários estados e caminha para se tornar feriado nacional. É claro que o racismo difuso, ainda existente entre nós, buscará criar algumas dificuldades para que isso aconteça.
O “caso Zumbi” demonstra que a história continua aberta para a criação de novos heróis e fatos. Conforme novas forças sociais entram em cena, a história vai se ampliando, se democratizando. Operários, camponeses, negros, mulheres, homossexuais e idosos, corretamente, continuam tentando emplacar os seus heróis. Hoje são apenas deles, amanhã poderão ser de todos – ou, pelo menos, de quase todos.
Heróis regionais, de movimentos específicos, podem, em determinadas conjunturas, se tornarem heróis nacionais. Por outro lado, heróis nacionais podem decair na escala de prestígio social e entrar em recesso – ou mesmo se aposentarem definitivamente. Cito apenas os casos dos bandeirantes paulistas, da Princesa Isabel (a “redentora dos escravos”) e do Duque de Caxias – este último foi atingido em cheio pelo desgaste sofrido pelas Forças Armadas durante a Ditadura Militar, que imperou no país por 20 anos.
Diga-se, de passagem, que o nosso bom Duque só atingiu o status de grande herói durante outra ditadura, a do Estado Novo. Vargas estava em luta acirrada para reforçar os aspectos unitários da Nação contra o federalismo das elites regionais. O ato solene da queima das bandeiras estaduais e a ascensão do Duque fazem parte de um único e mesmo processo, e serviam aos mesmos interesses econômicos e sociais.
Quem e como se faz a história
Não são indiferentes para a sociedade os personagens e acontecimentos que escolhemos para compor a história. Estas escolhas não são neutras. São carregadas de significados e produzem efeitos na consciência do povo. Podem reforçar visões e práticas conservadoras ou progressistas. Nada mais falso que encarar a história como coleção de fatos puros (objetivos), distribuídos cronologicamente.
Por fim – e isso é o mais importante – devemos acentuar que mesmo os grandes personagens somente são grandes porque expressaram, em algum momento, determinados movimentos mais amplos da própria história – não são propriamente eles que fazem a história e sim são produzidos por ela. O que seria do imperador Napoleão Bonaparte sem a revolução francesa, que convulsionou o solo nacional? Sem ela, ele possivelmente não ultrapassaria a modesta condição de pequeno oficial em alguma província distante de Paris.
As mesmas questões servem para o Brasil. Será que sem Tiradentes ou D. Pedro I não teríamos conquistado a Independência? Sem Isabel, ou mesmo Zumbi, não haveríamos tido a Abolição? Sem Deodoro não existiria a República? É claro que mesmo sem estes personagens o Brasil ainda seria uma República independente e sem escravidão. No máximo, os ritmos e as formas das mudanças teriam sido diferentes, mas não seu sentido geral.
Portanto, mais importante do que escolhermos nossos fatos e heróis é definirmos como encaramos o próprio fazer histórico. A história pode ser vista como obra de “grandes personagens” – indivíduos sobre-humanos - ou como construção coletiva. Pode ser encarada como o resultado de dádivas - e acordos por cima - das elites (econômicas e políticas) ou como o fruto de lutas sociais abrangentes, que têm por base interesses materiais concretos. A história pode ser vista como grandes momentos – únicos e irrepetíveis – ou como processos contraditórios de variadas durações, que conhecem momentos de rupturas revolucionárias.
Bibliografia[/b}
BORGES, Vavy Pacheco, O que é história, Ed. Brasiliense, SP, 1980.
BUONICORE, Augusto, Marxismo, história e revolução brasileira, Ed. Anita Garibaldi, SP, 2009
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SCHAFF, Adam, História e Verdade, Martins Fontes, SP, 1983.
*Este texto foi apresentado na mesa "A importância da história na formação do ser social" que compôs a programação do XX Encontro Nacional de Educadores, promovido pela Secretaria Municipal de Educação de Paulínia (SP) ) entre 26 e 28 de julho de 2010.
**Retirado do site Agência Carta Maior (clique aqui)
***Leia também: "A memória histórica como campo da luta de classes (I)" - clique aqui
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