No balanço do governo Lula, o artigo de Luiz Carlos Antero destaca o papel do Presidente operário no enfrentamento de um ambiente e um legado, às vezes esquecido, do antecessor FHC
Por Luiz Carlos Antero* para a revista Nordeste XXI
Após realizar sua última viagem internacional como Presidente para receber mais um título de “doutor honoris causa”, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que vendeu a CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) e que negou tudo o que escreveu, talvez para que sua obra não constasse na vala comum da mundana imersão presidencial, foi pródigo no patrocínio de um retrocesso democrático que varreu da Constituição de 1988 uma boa parte das conquistas nacionais e sociais posteriores ao fim do regime militar.
Compulsivo na edição de medidas provisórias (MPs), das quais abusou como nenhum antecessor, desmoralizando o Congresso Nacional com seu balcão de negócios, onde barrou 27 CPIs, FHC submeteu também o Judiciário. Para isso, nomeou seu “líder” no STF (Supremo Tribunal Federal) e TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Nelson Jobim, um sombrio personagem remanescente a determinadas armações da “governabilidade” — ainda hoje vigente como uma ostra, em sua versão castrense, no poder de Estado.
Entreguista extremado, FHC promoveu previamente às privatizações, intensa campanha contra as empresas públicas e abriu lugar cativo em seu gabinete palaciano para o FMI (Fundo Monetário Internacional) — que Lula, determinado, dispensaria depois.
Fervoroso ao legislar contra os trabalhadores, a esses FHC dedicou milhares de ataques letais aos seus direitos conquistados ou a pura e direta repressão — fatos gravados na memória de petroleiros, servidores públicos, caminhoneiros, entre inúmeras categorias.
Enquanto Lula, no seu tempo, definiu o prumo de uma política exterior soberana, independente e multipolar, FHC entrou para a História como o Presidente que mais viajou pelo mundo com a precípua missão de vender o País nos centros hegemônicos da economia internacional. A situação legada para o seu sucessor aproximou a imagem do Brasil das repúblicas da corrupção e de suas elites afogadas pela degradação moral.
Noutra situação, FHC, com seus títulos e pompa de estadista, poderia associar seu destino ao de parceiros como Alberto Fujimori, do Peru, a quem agraciou com elevadas honrarias nacionais, ou de outros elementos com o perfil de Domingo Cavallo, da Argentina, que terminou, nas circunstâncias daquela conjuntura, encarcerado pelo crime formal de contrabando. Na verdade, a essência comum dos fatos apontou em todos os casos para os crimes contra a economia e contra os povos dos seus países.
Denúncias de corrupção campearam livres e impunes em seus governos. Desde o escândalo da licitação do projeto Sivam, passando pela compra de votos para a aprovação da Emenda da reeleição, até o episódio das privatizações — e do sistema de telecomunicações em particular —, FHC teve sempre um fiel escudeiro a comprometê-lo pelos laços de intimidade, entre os quais Daniel Dantas, embaixador Júlio César, Eduardo Jorge Caldas Pereira, Ricardo Sérgio de Oliveira, alguns deles ainda vigentes num certo noticiário.
A corrupção desenfreada em seus governos, mais que um atestado secular do baixo padrão moral das elites brasileiras, esteve umbilicalmente articulada à aliança dessas elites reunidas num pacto conservador para elegê-lo em 1994 e em 1998. Fundamentalmente as mesmas forças que ofereceram sustentação à ditadura militar e que, ao lado de José Serra e do sociólogo e professor da USP — ele próprio um rebento bem nascido dessas elites —, patrocinaram um novo retrocesso republicano quanto às conquistas democráticas no Brasil.
Políticos conservadores que resistiram ou relutaram ante o movimento pela democratização, aliados e beneficiários da ditadura, foram plenamente restaurados no comando da República pelo pacto neoliberal. Todos estiveram unidos ao PSDB e PFL/DEM nas campanhas de 2002, 2006 e 2010.
As reformas do Capítulo da Ordem Econômica, que buscou aprovar desde o primeiro dia de seu primeiro mandato, em 1995, foram incorporadas à Constituição mediante o jogo fisiológico com os partidos conservadores e a ostensiva ação dos seus lobistas — que trafegavam fagueiros pelo Parlamento. Promoveu-se então o processo de privatizações e desnacionalização da economia brasileira em troca de “moedas podres” e substanciais atrativos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para arranjos de “investidores”.
Na entrada de apenas R$ 8,8 milhões da privatização das teles, praticamente a metade foi financiada pelo BNDES. Dois anos e meio antes, foram investidos na infraestrutura do setor, nada menos que R$ 21 bilhões em recursos públicos. A CVRD, com 50 anos de investimentos produtivos e de infraestrutura (em portos, navios, estradas de ferro, locomotivas, e todo tipo de maquinarias e equipamentos) foi transferida por R$ 3,13 bilhões, com seus ativos e jazidas minerais imensuráveis e “incentivos” do mesmo BNDES.
No discurso predador de FHC e de sua equipe neoliberal, as privatizações iriam resolver problemas da Saúde e da Educação, o problema da dívida pública e assegurar a estabilidade da economia. Nada disso ocorreu. Os índices inflacionários voltaram a crescer e o País perdeu ritmo de crescimento econômico.
Tais medidas caminharam pari passu ao corte dos direitos trabalhistas, secundadas pelo ajuste fiscal — que determinou o congelamento dos salários dos servidores federais, o corte de investimentos públicos e na área social que acarretaram drásticas consequências, a exemplo da crise energética do mais apreciado sistema hidrelétrico do mundo.
Nessa linha do tempo e no espaço aéreo mundial, esta ação contra o Brasil buscou completar a insípida tarefa de torná-lo prisioneiro das teias do capital financeiro internacional, sob o discurso de assegurar uma inflação sob controle, o ajuste das contas públicas e a estabilidade econômica. Na verdade, conduziu ao desmonte da economia e do Estado brasileiro e à instabilidade de uma imensa evasão de divisas, ao sabor dos juros mais elevados do mundo e das imprevisíveis flutuações da moeda brasileira.
A especulação e o FMI no comando
A instabilidade apenas cresceu quando os proprietários do capital volátil, conhecidos no mercado como “investidores”, passaram a desconfiar da capacidade de endividamento do País e da própria continuidade da atual política — uma festa que enriqueceu muitos especuladores.
O crescimento acelerado da dívida pública foi secundado pelo atrofiamento da produção no País, visto que o dinheiro caro e a elevada carga tributária, voltada para o cumprimento das metas vinculadas ao superávit primário, passaram a inibir o empresariado. A isso se somaram cortes cada vez mais profundos no Orçamento Geral da União (OGU), impondo mais sacrifícios ao País e ao seu povo, sem que o crescimento da dívida fosse contido.
Até atingir os R$ 250 bilhões de reservas, o presidente Lula empreendeu uma espinhosa caminhada no terreno legado por FHC. Na verdade, um campo minado com dispositivos prontos para explodir: os vencimentos de títulos cambiais e sua difícil e onerosa rolagem; a redução da entrada de capitais externos; o limite cada vez mais estreito de decisão sobre o uso das reservas cambiais; os vencimentos da dívida externa; a conta de transações correntes; a balança comercial. A cilada preparada pelo governo neoliberal foi lastreada pelo “auxílio” do FMI, em junho de 2002, após a redução do piso das reservas dos US$ 15 bilhões para US$ 5 bilhões.
Não coube a Lula a geração do desconforto ocasionado pelos pesados impostos convertidos em receita às necessidades e expensas do Estado, a requerer hoje uma profunda reforma. Foi ao longo dos governos de FHC que a carga tributária subiu de 25% para 34% do PIB. Também a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), criada a pretexto do financiamento da Saúde, mas de fato um artifício para assegurar receita para bancar o superávit e o robusto caixa de compromissos financeiros acordados com o FMI. Em maio de 2002, aproximando-se as eleições, já haviam sido desviados 75% dos recursos captados com a CPMF.
Nesse ambiente, também os cortes nos investimentos foram crescendo para gerar superávit primário no setor público e, desse modo, satisfazer o FMI e o capital especulativo: em 1995 havia superávit da ordem de R$ 1,7 bilhão; em 1997 houve déficit de R$ 8,3 bilhões; em 1999, após um estelionato eleitoral seguido de intenso ataque especulativo, houve um corte drástico de recursos nas áreas sociais e nos investimentos em infra-estrutura. O superávit passou então à órbita dos R$ 31,1 bilhões; em 2000, R$ 38,2 bilhões; em 2001, R$ 46,6 bilhões.
De tal modo que Lula recebeu um País insolvente, agonizante, em processo de fatal colapso, numa gangorra que combinava orgia financeira, inflação e desemprego. Essa falsa política estagnara a produção e empurrara milhões de brasileiros para o rumo do desespero, da fome, do lixo e da criminalidade, mas fez com que o luxo, a opulência e o gáudio dos bancos privados, beneficiários da estabilidade monetária e dos juros acachapantes, fossem ao paroxismo (lucro de 355%, entre 1995 e 2001).
Atento a esse desempenho dos principais responsáveis pelo seu caixa dois nas campanhas de 1994 e 1998, o presidente FHC quis mostrar-se ainda mais grato e generoso. Especialmente com os que, mesmo ganhando na ciranda financeira, emitissem cheques sem fundo. Por isso, destinou R$ 37 bilhões para o PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro).
Após a experiência de oito anos de gestão, Lula deve estar ainda mais convencido de que a ruptura com os fundamentos do Plano Real é inevitável para que o Brasil alcance o pleno desenvolvimento e a posição de grande potência econômica no cenário internacional. Porque o atual modelo macroeconômico — em seu intrínseco paradoxo que o atual governo logrou domar a seu favor — ainda encampa e oculta entretanto as causas e as consequências do descontrole plantado e colhido por FHC, quando o pagamento da conta dos seus descaminhos chegou na forma de uma inflação escamoteada, na sucessão de aumentos de tarifas e impostos do telefone, da água, da energia elétrica, dos combustíveis (inclusive do gás de cozinha), das passagens de ônibus, dos medicamentos, da carne, do feijão, do arroz e até dos ícones do Real — o pãozinho e o frango.
Juros: contra Lula, Dilma e o Brasil
A mais elevada e exorbitante taxa de juros do planeta foi mantida em 10,75% na última reunião, no governo Lula, do Copom (Comitê de Política Monetária) do Banco Central. Diante de tão elevada lucratividade, é este um especial aspecto que faz do Brasil um paraíso para os especuladores do mundo inteiro, ocasionando protestos generalizados na sociedade, das centrais sindicais dos trabalhadores às organizações patronais do empresariado. Trata-se de uma absurda lógica que em sua essência teme o “aquecimento” da economia e, portanto, o desenvolvimento. O conservador Copom foi instituído em junho de 1996 para estabelecer as diretrizes da política monetária e definir a taxa básica de juros (Selic) — enquanto instrumento utilizado pelo BC para manter a inflação sob controle ou estimular a economia.
Selic é um sistema eletrônico de atualização diária das posições das instituições financeiras para assegurar maior controle sobre as reservas bancárias. Hoje, identifica também a taxa de juros que reflete a média de remuneração dos títulos federais negociados com os bancos; é considerada a taxa básica porque é usada em operações entre bancos e, por isso, tem influência sobre os juros de toda a economia. Rege-se, portanto, pelo mecanismo dos ganhos especulativos. É, nesse sentido, a alternativa eleita pelos especuladores em geral, que atuam fora e acima da esfera produtiva, ganhando com o aumento da atratividade das aplicações em títulos da dívida pública. A elevação dos juros, assim, serve formalmente para inibir o consumo e o investimento produtivo, retrair a economia e o “risco inflacionário”. De fato e na prática, alimenta o danoso ócio do capital financeiro, gera “bolhas” e proporciona o enriquecimento fácil, descolado da produção. Por outro lado, a queda dos juros oferece mais crédito e consumo à população. O “temor” é de que o aumento da demanda pressione os preços caso a oferta da produção industrial não corresponda a um consumo maior, gerando inflação (que o saudoso panfletário Gondim da Fonseca chamava de “arma dos ricos”).
Com a redução da taxa Selic, cresce o dinheiro disponível no mercado financeiro para investimentos mais rentáveis que os títulos pagos pelo governo. A elevação dos juros é, portanto, ruim para empresários e trabalhadores, principalmente em tempos de crise — quando é maior ainda a necessidade de investimentos na produção. Pois, em suma, o investimento em dívida muda o rumo do dinheiro que financiaria o setor produtivo. Nos mercados, reduções da taxa de juros costumam direcionar a migração de recursos da renda fixa para a Bolsa de Valores, no rumo dos investimentos em ações das empresas que lá operam em tese no pressuposto produtivo dos recursos injetados. Os grilhões dos juros persistiram ao longo do governo Lula e são gargalos que aguardam a audácia política da presidente Dilma Rousseff.
*Luiz Carlos Antero, jornalista, escritor e sociólogo, é membro da equipe de pautas especiais do Vermelho.
** Retirado do site da Carta Capital (clique aqui)
***Veja também As mentiras do PIG em 08 anos – Blog do Tiago Ventura (clique aqui)
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