quarta-feira, 12 de março de 2014

A tortura do golpe de 1964



Estamos às vésperas de aniversário de 50 anos do golpe civil-militar de 1964. E até hoje pouco se sabe o que realmente aconteceu nos bastidores, nos porões, da ditadura. Ainda não se sabe a lista completa dos civis que financiavam os coturnos para prender e matar brasileiros.

Sabemos que o golpe de 1964 teve a influência direta dos Estados Unidos, através da Operação Condor, para derrubar governos de caráter trabalhistas e manter os bolsos cheios de suas multinacionais. Os EUA ganharam a simpatia da burguesia nacional com suas migalhas e a imprensa grande, toda ela, ecoou o golpe como sendo a “salvação da pátria”.

Inventaram a fantasia de golpe comunista ou “república sindicalista”. Tudo porque para a elite nacional, pobre tem que ser pobre até a sua 14ª geração, pelo menos. E entenda por pobre não só a questão financeira. Aí vale a questão intelectual também. Foi durante a ditadura que o ensino público no Brasil começou a ruir e até hoje sua lógica elitista se mantém.


Mas além de servir aos propósitos do grande capital internacional, o golpe civil-militar de 1964 praticou as maiores barbaridades que um Estado pode cometer contra seu povo: a institucionalização da tortura.

Até hoje temos em nosso país a tolerância com a tortura. Desde que seja em um “maloqueiro”, preto e pobre, uns tabefes são bem-vindos. Essa cultura está impregnada no aparelho repressivo do Estado: a polícia. Seja civil ou militar.

Até mesmo o deboche em relação aos Direitos Humanos (DH) vem de essa época. De que DH serve para salvar bandido. Quem solta frases desse tipo por aí é que precisa ser salvo.

Nos anos de 1960, o mundo vivia o auge da Guerra Fria e os debates sobre os modelos socioeconômicos estavam no centro do debate político. As teses socialistas estavam sendo estudadas, analisadas, até mesmo reformuladas e sua materialização sugerida. Assim como os defensores do liberalismo. O debate teórico era bem rico naqueles dias. Basta ler os textos de ambas as visões de mundo. Mas se o fizer, lembre-se de contextualizá-los!

É triste ver que até hoje ainda tem gente que acredita na cantilena do golpe comunista e defende a volta da ditadura. As viúvas do golpe civil-militar de 1964 ainda conseguem manter influência em alguns setores da sociedade.

É triste ver que quem defende a volta da barbárie, sequer conhece a História do Brasil ou mesmo de quem lutou contra o regime de 1964. Nem todos que se insurgiram contra o golpe eram comunista. Havia muitos liberais nas trincheiras de luta.

Mas enfim, tem gente – e a tristeza segue – acha que os relatos de tortura são um exagero ou apenas conversa fiada para receber anistia do Estado brasileiro. À vocês, sugiro assistir abaixo o documentário “Brasil: relatos da tortura”.

Assisti ao vídeo ao acessar o site Diário do Centro do Mundo, de Paulo Nogueira. Li seu comentário sobre o que acabara de assistir e resolvi fazer o mesmo. Como ele me emocionei. Mas já lendo suas palavras, as quais reproduzo aqui também. (logo após, segue o vídeo)



Dodora (1945-1976)

Vejo um documentário sobre tortura na ditadura militar, e me chama a atenção uma mulher.

É um trabalho rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma época sinistra.

O documentário foi gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois cineastas americanos – Haskell Wexler e Saul Landau — que estavam no Chile para entrevistar Allende.

Eles souberam que havia um grupo de exilados brasileiros com histórias de tortura e decidiram registrá-las com sua câmara. O grupo tinha sido trocado pelo embaixador da Suíça no Brasil.

Surgiria, como que por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um pequeno grande épico do cinema que não se curva aos poderosos. Eram talentosos os americanos. Haskell posteriormente receberia dois Oscars por trabalhos na área de fotografia de grandes produções de Hollywood.

É uma mulher que me fisga no filme, uma jovem médica que narra as barbaridades que ela e os companheiros sofreram nas mãos dos agentes da ditadura.

Ela é bonita, articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas americanos.

Ela tinha 25 anos na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que narrou meticulosamente. Parecia invencível diante das violências.

“Fui colocada nua numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e esbofeteada.”

Seu rosto bonito ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os algozes.

Durante a sessão puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”, e ela lembrou que os torturadores pareciam “excitados, felizes” como se estivessem numa festa.

A certa altura, a agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu mamilo. Pressionavam e soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam que iriam matá-la.

Uma das forças do vídeo é que os entrevistados mostram como eram as torturas, como o pau de arara. São reproduções realistas e assustadoras.

Comecei a ver, por sugestão de minha filha Camila, e não consegui parar em quase 1 hora de conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como há muito tempo não ficava.

E depois quis saber mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta anos, que estaria fazendo?

E então vem a parte triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom Casmurro quando as coisas degringolam, pare aqui quem não quer ver história triste.

Maria Auxiliadora Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que comoveu aos cineastas e a mim. Dora ou Dodora, como a chamavam.

Ela não viveu para ver o fim do horror militar.

Pouco tempo depois, como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um trem. Ela estava com problemas psiquiátricos derivados da selvageria a que foi submetida, e tinha acabado de se consultar com seu médico.

Morava, então, em Berlim.

Dois anos depois de feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora teve que partir de novo.

Primeiro foi para a Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era brilhante: passou em primeiro lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu aprovação para complementar seus estudos de medicina na Universidade de Berlim.

Fiquei triste, quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já imaginava entrevistá-la, e especulava sobre como ela estaria hoje. Conservaria vestígios da beleza sobranceira e altiva do passado?

Num voo mental, penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia, hoje seria uma avó, cheia de histórias para contar aos netinhos. Fantasio-a de bicicleta em Copenhague, feliz entre pessoas que são felizes porque aquela é uma sociedade como prescreveu Rousseau: sem extremos de opulência e de miséria.

Mas ela nasceu e cresceu na terra da iniquidade, que combateu com coragem assombrosa e idealismo inexpugnável. Não há em sua fala vestígio de remorso por ter caminhado o caminho que escolheu.

E então estou de novo nos dias de hoje.

Ver aqueles relatos me faz desejar que seja preso imediatamente o general insolente que tem abertamente pregado um novo golpe. Mais Dodoras? Jamais. Que minha Camila seja poupada do pesadelo em que viveu Dodora sob as botas covardes e assassinas de uma ditadura que protegeu apenas os ricos.

Em Laura, o detetive se apaixona pela foto de uma mulher assassinada. Como que me apaixonei por Dora ao vê-la no documentário.

Fico tolamente satisfeito quando Camila me conta que, pesquisando, descobriu que Dilma prestara tributo àquela brasileira indomável.

Em fevereiro de 2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma para a presidência da república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte de minha história. Mais que isso, eles fazem parte da história do Brasil.”

Dilma citou três pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu coração.”

E no meu também, desde hoje.

Essa é Dodora




Brasil: relatório da tortura



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