Entre os
inúmeros acontecimentos do ano de 2012, um dos mais destacados foi a
instituição da Comissão Nacional da Verdade em maio. Várias
comissões estaduais para auxiliá-la foram criadas, inclusive em
Alagoas. Mas infelizmente essa não saiu do papel. Em outubro, sob a
orientação do professor Roberto Amorim, publiquei uma reportagem a
respeito no Infoca, um portal laboratório para publicação de conteúdo do curso de Jornalismo do CESMAC
que reproduzo abaixo.
Nada do que foi reportado mudou. A mentira perdura...
Quanto
tempo dura uma mentira?
Gastone Beltrão, uma das vítimas da ditadura militar / Foto Arquivo |
Quanto tempo uma família pode esperar para enterrar um pai, mãe, filho, tio ou sobrinho desaparecido? Quanto tempo uma família pode conviver com uma versão falsa sobre a morte de um parente? Quanto tempo um país pode fingir que não torturou e matou sua gente? Quanto tempo dura uma mentira?
Há 48
anos que um sem número de famílias brasileiras convivem com esses
questionamentos. Há 48 anos que o Brasil finge que o período de
1964 a 1988 foi um período qualquer. Responder a essas perguntas é
o objetivo central da Comissão Nacional da Verdade e das comissões
estaduais.
Criada
pela Lei 12528/2011 e instituída em maio de 2012, a Comissão
Nacional da Verdade tem por finalidade desvendar os crimes cometidos
contra os Direitos Humanos por parte do Estado brasileiro no período
da ditadura militar entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de
1988. Sem caráter punitivo, a Comissão tem o poder de convocar para
depor autoridades do período militar como forma de obter
esclarecimentos acerca de localização de corpos, métodos de
tortura e documentos em geral sobre os bastidores daquele período.
Oficialmente
estima-se que existam cerca de 500 casos de desaparecidos políticos
no país, mas o número deve aumentar. No último dia 26 de setembro
a Secretaria de Direitos Humanos enviou relatório à Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da
Justiça revelando 1.196 casos de trabalhadores rurais assassinados
ou desaparecidos por conta de disputas políticas e fundiárias.
Essas pessoas teriam ligação com as Ligas Camponesas, organizações
ligadas a Igreja Católica que combatiam a ditadura militar.
Em abril
deste ano foi aprovada na Assembleia Legislativa do Estado a criação
da Comissão Estadual da Verdade. A lei é de autoria do deputado
Judson Cabral (PT) tem a missão de apurar os crimes cometidos pelo
Estado brasileiro em Alagoas auxiliando a Comissão Nacional da
Verdade. Ambas têm dois anos para apresentar os resultados.
Mas até
agora em Alagoas nada saiu do papel. A indicação dos membros da
Comissão Estadual é de responsabilidade do governador Teotônio
Vilela Filho, que parece não dar a devida importância ao assunto
devido à demora. Postura muito diferente a do pai, o menestrel das
Alagoas, que morreu combatendo a ditadura militar e o retorno da
democracia no país.
Outro
problema que a Comissão deve encontrar é o acesso aos documentos
oficiais da época. Desde dezembro de 2010 existe uma lei que
determina que toda documentação seja repassada ao Arquivo Público
do Estado, mas até agora nenhuma folha foi entregue.
Violações
dos Direitos Humanos
“Vamos
examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticadas durante a ditadura militar”, disse o deputado estadual
Judson Cabral. Para ele, Alagoas deve contribuir com a elucidação
dos crimes dos militares no país. Cabral teve a iniciativa de criar
a Comissão Estadual por presidir a Comissão de Direitos Humanos da
Assembleia Legislativa e ter acompanhado as ações repressivas da
ditadura nos tempos em que frequentava a Universidade Federal de
Alagoas.
Já para
o historiador Alberto Saldanha da Universidade Federal de Alagoas, as
comissões locais somente contribuirão com a Comissão Nacional se
tiverem condições estruturais e políticas necessárias para atuar.
Sobre a possibilidade de haver encobrimentos, por conta dos diversos
interesses envolvidos nas comissões estaduais, Saldanha enfatiza que
caberá aos setores organizados da sociedade exercerem a
fiscalização.
“É
claro que existem segmentos que não querem a apuração. Portanto,
cabe a todos aqueles comprometidos com o resgate da verdade
acompanharem desde o início os trabalhos das comissões locais.”
Sobre as
condições de trabalho da comissão estadual, Saldanha relembra que
desde o final de 2010 existe um decreto do Governo do Estado, 9.228
de 13 Dezembro de 2010, determinando que no prazo de 180 dias toda a
documentação relacionada ao período do Regime Militar, existente
em órgãos públicos fossem recolhidos ao Arquivo Público do Estado
de Alagoas – APA e que até agora nada teria sido feito, apenas uma
mudança na direção do Arquivo.
“Se a
Comissão da Verdade local depender do apoio técnico do APA ela não
ira a lugar nenhum”, ressalta, “Por isso, deve se exigir do
Governo do Estado a infraestrutura ideal para o bom funcionamento da
Comissão, caso contrário ela corre o risco, após o prazo de 02
anos, não ter nada por relatar”.
Para
Maria Betânia Nunes Pereira, advogada da Rede Nacional de Advogados
Populares – RENAP, a Comissão Nacional da Verdade trará um ganho
enorme à sociedade brasileira e ela espera que a comissão estadual
de fato ajude a resgatar a verdade sobre esse período de nossa
História.
Sobre a
composição da Comissão Estadual da Verdade é discurso comum a
necessária vinculação dos componentes com o período da ditadura
militar e com a defesa dos direitos humanos. Para Judson Cabral, os
sete membros escolhidos pelo governador devem ser idôneos, de
conduta ética, reconhecidamente identificados com a defesa da
democracia e dos direitos humanos. A advogada Betânia segue na mesma
linha e acrescenta “que não sejam revanchistas”.
Já o
professor Alberto Saldanha coloca a importância de ter pessoas de
organizações vinculadas a defesa dos Direitos Humanos e “não
deve ser uma comissão unicamente de representantes do Estado”.
Para
ambos, o que mais lhes preocupa é quando se dará o início dos
trabalhos das Comissões.
Resistência
à ditadura
Na metade
do século XX, o Brasil já vivia momento conturbados em sua
História. Poucos eram os períodos de normalidade democrática. Mas
a ditadura militar foi o auge do autoritarismo nacional e como era de
se esperar, insurgentes apareciam em todos os cantos do país. Em
Alagoas não foi diferente.
“Aos 16
anos, em 1966, fui a um congresso da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas – Ubes e a partir daí comecei a militar
politicamente. Ingressei na Ação Popular”, lembra Raul Pinto
Paes, um dos principais militantes da esquerda alagoana no período.
Raul
atuava no movimento estudantil, com destaque para sua atuação no
colégio Moreira e Silva. “Lá o movimento sempre teve muita força.
Quando mataram o Edson Luís no Rio de Janeiro, organizamos aqui o
'Levante do Cepa'. Desde então fiquei bastante visado pela
ditadura”. Porém, Raul gosta sempre de destacar que suas ações
eram pacíficas “sempre fiz movimento pacífico com panfletagens e
agitação”.
Apesar de
estudante, Raul era um dos militantes mais procurados pelo regime
militar em Alagoas. Para não ser preso precisou fugir para o
Maranhão, onde viveu clandestinamente como vendedor de seguros e
vivendo em repúblicas juntamente com outros vendedores.
Mesmo com
a distância e a clandestinidade, Raul sempre conseguia ficar sabendo
dos acontecimentos em Alagoas, das prisões e mortes de militantes.
Mas em nenhum momento aquelas notícias lhe tiravam a vontade de
combater a ditadura militar “aquilo me causava indignação. Me
dava mais vontade de lutar contra o regime militar. As mortes que
mais me abalaram foram a de Gastone Beltrão, Jayme Miranda e Odijas
Carvalho. Odijas, inclusive, era meu vizinho.”
Já o
professor universitário Amundson Portela, lembra que em 1969,
estudante do Colégio Marista, pichava os muros da escola com “abaixo
a ditadura” e que por conta da influencia de seus pais teve uma
“expulsão branda” do colégio. “De lá fui para o Liceu
Alagoano. Ele funcionava onde hoje é a Secretária Estadual de
Educação. Lá fui recrutado pelo Raul Pinto Paes e entrei para a
AP.”
Sua
atuação era basicamente o de agitação e propaganda, além de
organizar reuniões. Sempre como foco nas atividades de rua denunciar
as prisões e as mortes da ditadura. Amundson nos lembra que não
chegou a ser preso, mas sempre se escondia em casa de amigos. “Depois
que Raul precisou fugir para o Maranhão, eu diminuí minha atuação,
mas a notícias das prisões e assassinatos me causavam muita
revolta.”
“Só
voltei a atuar na linha de frente por ocasião da criação da
Sociedade Alagoana de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), em 1977, na
qual fui o tesoureiro da primeira diretoria”, lembra.
Tanto
Raul Paes quanto Amundson Portela, ex-militantes da Ação Popular
possuem grandes expectativas com a Comissão Nacional da Verdade e
com a comissão estadual. Para eles, existem casos em Alagoas
emblemáticos que precisam ser revelados de fato para que a sociedade
dê o devido valor aos militantes mortos pela ditadura. Raul
inclusive, destaca a atuação já iniciada de Comissão Estadual em
Pernambuco “Recentemente, estive em Recife para uma homenagem ao
Padre Antônio Henrique Pereira Neto. A Comissão da Verdade de
Pernambuco desvendou sua morte. Ele ajudava os militantes de esquerda
a lutar contra a ditadura.”.
Raul
também destaca que em Alagoas não haviam muitos militantes, na
verdade conseguiam “mobilizar setores da classe média e até
filhos dos coronéis”, daí o estardalhaço. “Parecíamos maiores
do que éramos”, completa.
Já
Amundson destaca que a Comissão Estadual da Verdade pode ajudar a
fazer justiça inclusive em casos como o de Marcelino Máximo Dantas
da Silva. Preso e torturado na prisão do Derby, bairro de Recife.
Depois foi jogado na sarjeta com o ombro quebrado, onde fora
encontrado. Por conta da prisão não pôde terminar seu curso de
medicina. “Ele ainda está vivo, mas aquilo mudou os rumos de sua
vida de forma determinante”, ressalta.
Todos os
entrevistados avaliam este como o melhor momento para a elucidação
dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro entre 1964 e 1988. Mesmos
aqueles que não foram perseguidos, mas que desejam que nosso passado
seja de fato conhecido estão esperançosos com os trabalhos da
Comissão Nacional da Verdade.
O fato da
Presidente da República, Dilma Rousseff, ter sido presa e torturada
pela ditadura militar é, como afirma Raul Paes, “o melhor momento”
para apurar as barbaridades cometidas naquele período. É essa a
expectativa desde o deputado Judson Cabral, autor da Lei que cria a
Comissão Estadual da Verdade, passando pela a advogada de militante
dos direitos humanos, Maria Betânia, pelo historiador Alberto
Saldanha e pelo ex-militantes contra a ditadura militar Raul Paes e
Amundson Portela.
“Não
podemos andar para frente sem sabermos de fato de onde viemos”
disse Maria Betânia. Já Raul e Amundson vão além, para eles
desvendar os crimes cometidos pelos militares inibirão que outros
desse tipo voltem a acontecer no país. “Acuar pessoas que ainda
possam existir que simpatizem com aquelas práticas”, ressaltam.
Judson Cabral, autor da Lei da Comissão Estadual da Verdade / Foto Jonathan Lins |
Raul Paes lutou contra a ditadura militar em Alagoas / Foto Jonathan Lins |
Amundson Portela, outro lutador pelo retorno da democracia / Foto Jonathan Lins |
Corpo de Jayme Miranda nunca foi encontrado / Foto Arquivo |
Odijas Carvalho foi morto pelos militares em Pernambuco / Foto Arquivo |
Alberto Saldanha: "As comissões precisam ter condições estruturais e políticas" / Foto: internet |
Maria Betânia: "Composição sem revanchismo" |
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