Estamos
às vésperas de aniversário de 50 anos do golpe civil-militar de 1964. E até
hoje pouco se sabe o que realmente aconteceu nos bastidores, nos porões, da
ditadura. Ainda não se sabe a lista completa dos civis que financiavam os
coturnos para prender e matar brasileiros.
Sabemos
que o golpe de 1964 teve a influência direta dos Estados Unidos, através da
Operação Condor, para derrubar governos de caráter trabalhistas e manter os
bolsos cheios de suas multinacionais. Os EUA ganharam a simpatia da burguesia
nacional com suas migalhas e a imprensa grande, toda ela, ecoou o golpe como
sendo a “salvação da pátria”.
Inventaram
a fantasia de golpe comunista ou “república sindicalista”. Tudo porque para a
elite nacional, pobre tem que ser pobre até a sua 14ª geração, pelo menos. E entenda
por pobre não só a questão financeira. Aí vale a questão intelectual também. Foi
durante a ditadura que o ensino público no Brasil começou a ruir e até hoje sua
lógica elitista se mantém.
Mas
além de servir aos propósitos do grande capital internacional, o golpe
civil-militar de 1964 praticou as maiores barbaridades que um Estado pode
cometer contra seu povo: a institucionalização da tortura.
Até
hoje temos em nosso país a tolerância com a tortura. Desde que seja em um “maloqueiro”,
preto e pobre, uns tabefes são bem-vindos. Essa cultura está impregnada no
aparelho repressivo do Estado: a polícia. Seja civil ou militar.
Até
mesmo o deboche em relação aos Direitos Humanos (DH) vem de essa época. De que
DH serve para salvar bandido. Quem solta frases desse tipo por aí é que precisa
ser salvo.
Nos
anos de 1960, o mundo vivia o auge da Guerra Fria e os debates sobre os modelos socioeconômicos
estavam no centro do debate político. As teses socialistas estavam sendo
estudadas, analisadas, até mesmo reformuladas e sua materialização sugerida. Assim
como os defensores do liberalismo. O debate teórico era bem rico naqueles dias.
Basta ler os textos de ambas as visões de mundo. Mas se o fizer, lembre-se de
contextualizá-los!
É
triste ver que até hoje ainda tem gente que acredita na cantilena do golpe
comunista e defende a volta da ditadura. As viúvas do golpe civil-militar de
1964 ainda conseguem manter influência em alguns setores da sociedade.
É
triste ver que quem defende a volta da barbárie, sequer conhece a História do
Brasil ou mesmo de quem lutou contra o regime de 1964. Nem todos que se
insurgiram contra o golpe eram comunista. Havia muitos liberais nas trincheiras
de luta.
Mas
enfim, tem gente – e a tristeza segue – acha que os relatos de tortura são um
exagero ou apenas conversa fiada para receber anistia do Estado brasileiro. À vocês,
sugiro assistir abaixo o documentário “Brasil:
relatos da tortura”.
Assisti
ao vídeo ao acessar o site Diário do Centro do Mundo, de Paulo Nogueira. Li seu
comentário sobre o que acabara de assistir e resolvi fazer o mesmo. Como ele me
emocionei. Mas já lendo suas palavras, as quais reproduzo aqui também. (logo
após, segue o vídeo)
Dodora (1945-1976)
Vejo um
documentário sobre tortura na ditadura militar, e me chama a atenção uma
mulher.
É um trabalho
rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma época
sinistra.
O documentário foi
gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois cineastas americanos – Haskell
Wexler e Saul Landau — que estavam no Chile para entrevistar Allende.
Eles souberam que
havia um grupo de exilados brasileiros com histórias de tortura e decidiram
registrá-las com sua câmara. O grupo tinha sido trocado pelo embaixador da
Suíça no Brasil.
Surgiria, como que
por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um pequeno grande épico do cinema
que não se curva aos poderosos. Eram talentosos os americanos. Haskell
posteriormente receberia dois Oscars por trabalhos na área de fotografia de
grandes produções de Hollywood.
É uma mulher que me
fisga no filme, uma jovem médica que narra as barbaridades que ela e os
companheiros sofreram nas mãos dos agentes da ditadura.
Ela é bonita,
articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas
americanos.
Ela tinha 25 anos
na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que narrou meticulosamente. Parecia
invencível diante das violências.
“Fui colocada nua
numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e esbofeteada.”
Seu rosto bonito
ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os algozes.
Durante a sessão
puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”, e ela lembrou que os
torturadores pareciam “excitados, felizes” como se estivessem numa festa.
A certa altura, a
agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu mamilo. Pressionavam e
soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam que iriam matá-la.
Uma das forças do
vídeo é que os entrevistados mostram como eram as torturas, como o pau de
arara. São reproduções realistas e assustadoras.
Comecei a ver, por
sugestão de minha filha Camila, e não consegui parar em quase 1 hora de
conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como há muito tempo não ficava.
E depois quis saber
mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta anos, que
estaria fazendo?
E então vem a parte
triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom Casmurro quando as coisas
degringolam, pare aqui quem não quer ver história triste.
Maria Auxiliadora
Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que comoveu aos cineastas e a mim.
Dora ou Dodora, como a chamavam.
Ela não viveu para
ver o fim do horror militar.
Pouco tempo depois,
como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um trem. Ela estava com problemas
psiquiátricos derivados da selvageria a que foi submetida, e tinha acabado de
se consultar com seu médico.
Morava, então, em
Berlim.
Dois anos depois de
feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora teve que partir
de novo.
Primeiro foi para a
Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era brilhante: passou em primeiro
lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu aprovação para complementar seus
estudos de medicina na Universidade de Berlim.
Fiquei triste,
quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já imaginava entrevistá-la, e
especulava sobre como ela estaria hoje. Conservaria vestígios da beleza
sobranceira e altiva do passado?
Num voo mental,
penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia, hoje seria uma avó, cheia de
histórias para contar aos netinhos. Fantasio-a de bicicleta em Copenhague,
feliz entre pessoas que são felizes porque aquela é uma sociedade como
prescreveu Rousseau: sem extremos de opulência e de miséria.
Mas ela nasceu e
cresceu na terra da iniquidade, que combateu com coragem assombrosa e idealismo
inexpugnável. Não há em sua fala vestígio de remorso por ter caminhado o
caminho que escolheu.
E então estou de
novo nos dias de hoje.
Ver aqueles relatos
me faz desejar que seja preso imediatamente o general insolente que tem
abertamente pregado um novo golpe. Mais Dodoras? Jamais. Que minha Camila seja
poupada do pesadelo em que viveu Dodora sob as botas covardes e assassinas de
uma ditadura que protegeu apenas os ricos.
Em Laura, o
detetive se apaixona pela foto de uma mulher assassinada. Como que me apaixonei
por Dora ao vê-la no documentário.
Fico tolamente
satisfeito quando Camila me conta que, pesquisando, descobriu que Dilma
prestara tributo àquela brasileira indomável.
Em fevereiro de
2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma para a presidência da
república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso deixar de ter uma lembrança
especial para aqueles que não mais estão conosco. Para aqueles que caíram pelos
nossos ideais. Eles fazem parte de minha história. Mais que isso, eles fazem
parte da história do Brasil.”
Dilma citou três
pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu coração.”
E no meu também,
desde hoje.
)
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